Ana Brocanelo

Adoção de crianças e adolescentes: impasses e possibilidades.

Precisamos mudar nosso modo de pensar e retirar a excepcionalidade da adoção. Devemos nos permitir aplicar à adoção questões comuns que nos cercam, como: todo filho despende trabalho, todo filho precisa ser adotado pelos pais (sejam biológicos ou não), amor precisa ser decisão e não está ligado a laço consanguíneo, genitoras não são obrigadas a amar a criança gerada e pais podem aprender a amar filhos de outros pais.

No Brasil, 47 mil crianças e adolescentes estão acolhidas em abrigos, sendo que, destas, apenas 4.802 estão aptas à adoção. Em contrapartida, 39.872 pretendentes à adoção estão inscritos no Cadastro Nacional da Adoção (CNA). Diante destes números, inevitavelmente surge a questão: por que existem tantas crianças vivendo em instituições de acolhimento ou abrigadas em famílias acolhedoras quando há tantos pretensos pais à espera de um filho?

 

A resposta a esta indagação deve considerar dois cenários distintos. Primeiro, destas 47 mil crianças e adolescentes abrigados, nem todos foram destituídos do poder pátrio de suas famílias ou ainda não estão aptos à adoção. A título de explicação, uma criança ou adolescente somente pode ser disponibilizado para adoção quando a família perde o poder pátrio sobre ele (a), através de decisão judicial. Além disso, a criança ou adolescente precisa passar por um tratamento psicológico que a auxiliará e a preparará para conviver com outra família.

 

O segundo cenário que compõe esta realidade, refere-se às crianças e adolescentes que estão aptos à adoção, que somam hoje mais de quatro mil. Embora já estejam nas vias de serem adotados e tendo sido passadas todas as etapas de destituição e preparação, para estes órfãos ainda existem outros impasses. Num dilema de acusações entre pretendentes à adoção e juízes, ficam suspensos dois problemas: os pretensos pais acusam a burocracia do processo de adoção e os juízes apontam a especificidade do perfil de criança engendrado pelos pretendentes, que dificulta e prolonga o encontro da criança desejada pelos pais.

 

Para responder à questão, a Associação Brasileira de Jurametria (ABJ) foi contratada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Através de estudos, os advogados da ABJ chegaram a uma triste conclusão: a Justiça despende quase um ano, em vão, na busca de citar os pais das crianças e adolescentes envolvidos em processo de destituição familiar. Nesse dado, podemos visualizar a incoerência do processo, pois, enquanto a Justiça utiliza muito tempo para destituir o poder da família, a criança e o adolescente cresce nos abrigos. De acordo com o perfil de pretendentes, quanto mais velhas as crianças e adolescentes, menor o número de pessoas interessadas em adotá-las.

 

 

• Rede de proteção social para crianças e adolescentes:

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seus 267 artigos, garantiu pela ação do Estado e da sociedade, uma grande rede de proteção social para as crianças e adolescentes. Caso surja a dúvida de quem faz parte desta rede, a resposta que podemos dar é simples: todos nós.

 

Podemos aqui retomar a questão inicial: grande quantidade de crianças em situação de acolhimento versus vasto número de pretensos pais. Ao falarmos deste tema, vemos incontáveis acusações a terceiros serem levantadas. Morosidade dos processos, burocracia e especificidade do perfil são algumas das questões levantadas por indivíduos, na ânsia de encontrar um culpado. Entretanto, nos esquecemos que nesse julgamento todos nós somos réus, pois todos participamos da rede de proteção social para as crianças e adolescentes.

 

O artigo 227 da Constituição Federal assim estabelece: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. É sobre esta prioridade absoluta à convivência familiar, seja esta biológica ou não, que toda a rede de proteção social à criança e adolescente deve debruçar-se.

 

Deveríamos negar, sob todas as hipóteses, a possibilidade de uma criança crescer e chegar à maioridade sem uma convivência familiar. Para isso, todas as pessoas, de todos os pontos da rede, devem mobilizar-se. O processo de destituição, como um todo, precisa ser mais célere, audacioso e justo. A prioridade não deve ser o desejo dos pais biológicos, mas a segurança e aplicabilidade do artigo 227 da Constituição. Também é preciso que exista uma política pública eficaz e segura de entrega consciente de bebês à adoção. Uma entrega humanizada, que não realize julgamento e constrangimento à genitora e que facilite o cadastramento da criança no CNA.

 

A garantia à convivência familiar deve ser buscada mesmo durante o processo de destituição do poder familiar. Essa garantia pode ser viabilizada por meio do acolhimento familiar, uma política de assistencial social que, em tese, anseia substituir o acolhimento institucional e oferecer à criança e ao adolescente a oportunidade de viver em uma família, distante dos regimentos impostos num acolhimento institucionalizado (por exemplo: horário para refeições, roupas coletivas, tratamento coletivo, entre outros). Tanto Estado, quanto sociedade devem envolver-se nesse projeto para que ele tome vida. Sendo que cada município precisa criar sua lei municipal de execução do acolhimento familiar. Posteriormente, a sociedade necessita mobilizar-se para candidatura à família acolhedora, a fim de oferecer um lar a estas crianças até que elas encontrem uma família adotiva.

 

Precisamos também mudar nosso modo de pensar e retirar a excepcionalidade da adoção. Devemos nos permitir aplicar à adoção questões comuns que nos cercam, como: todo filho despende trabalho, todo filho precisa ser adotado pelos pais (sejam biológicos ou não), amor precisa ser decisão e não está ligado a laço consanguíneo, genitoras não são obrigadas a amar a criança gerada e pais podem aprender a amar filhos de outros pais.

 

Por fim, a criança ou adolescente apto à adoção não pode ser objeto de satisfação de um anseio dos pais. Como rede de proteção, precisamos buscar famílias para as crianças e não filhos para pretensos pais. Nesse sentido, para encerrar, podemos falar sobre a especificidade do perfil dos pretendentes. Todos nós trazemos sonhos e desejos em nossas mentes, bem como conhecemos nossos limites.

 

Assim, dentro do que nossa capacidade nos permite, precisamos adequar o ideal ao real. Novamente pensando na excepcionalidade da adoção, temos um impasse: se não podemos ter nossos filhos biológicos, por que tanto critério para seleção de uma criança adotiva? Nada é perfeito, não existe família perfeita. Essa busca é fadada ao fracasso e sofrimento. Os pretensos pais deveriam buscar abrir-se mais a outros perfis de crianças – claro, salvo suas capacidades e limites.

 

 

Um abraço para todos.

Ana Brocanelo – Advogada.

OAB/SP:176.438

Fonte: Agência Conexões. “Processo de Adoção. Impasses e possibilidades.‘ Publicado sob licença CC BY 4.0.

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