“O Homem Mais Odiado da Internet” é uma série documental lançada pela Netflix. Esse homem é Hunter Moore, um criminoso condenado que permitiu a distribuição não consensual de milhares de imagens privadas ao fundar um site de Revenge Porn (Pornografia de Vingança) chamado “Is Someone Up?“
O documentário captura o que é Revenge Porn, como é realizado e o quão traumático é para as vítimas. As mulheres da série não foram estereotipadas como ingênuas ou culpadas, como muitas vezes são na cobertura da mídia. A série mostrou como as milhares de pessoas que compartilham a imagem desempenham um papel na pornografia de vingança, não apenas a primeira pessoa que as envia.
Como a sociedade vê o crime sexual e como tratamos as mulheres que são vítimas? A série documental poderia ter ido mais longe falando sobre mulheres corajosas como vítimas de violência de gênero, não apenas sobre Revemge Porn, pois ignora que as imagens privadas compartilhadas sem consentimento nem sempre são realmente pornográficas. No documentário, muitas vezes, culpa-se a vítima, porque sugere que ela fez algo para merecer esse tipo de vingança.
Compartilhar imagens de outras pessoas, sem consentimento, é uma forma de violência e, muitas vezes, doméstica. A internet está saturada com essas imagens. Existem agora mais de 3.000 sites publicados e dedicados ao abuso sexual.
Vítimas de Revenge Porn ficam isoladas e com medo do que os outros pensam delas. Por causa disso, muitas apresentam vários problemas psicológicos, incluindo o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e depressão.
Como o documentário mostra, as vítimas são, geralmente, do sexo feminino. Suas imagens são compartilhadas sem permissão por homens próximos à vítima, pois a maioria dos abusos sexuais baseados em imagens é perpetrado por ex-parceiros.
Muitas pessoas imaginam que um ex-parceiro irritado comete esse crime por retaliação após o rompimento do relacionamento amoroso. No entanto, isso nem sempre é o caso. Um estudo de 2021, com mais de 2.000 britânicos, conduzido pelo escritório de advocacia Slater & Gordon descobriu que alguns homens queriam somente “assustar” suas vítimas. Outros acharam que era, simplesmente, “uma piada”.
Vivemos em uma sociedade na qual a misoginia e a cultura masculino levam à violência contra mulheres e meninas. “Upskirting” (violar a intimidade de uma mulher com fotos ou vídeos não autorizados de suas partes íntimas, feitos por debaixo da saia ou outra peça de roupa) e imagens de amamentação tiradas sem consentimento também são formas de abuso sexual e evidência do dano sexual causado às mulheres em nossa sociedade. Um estudo de 2017 descobriu que o impacto nas vítimas desse tipo de abuso sexual é semelhante ao da agressão sexual. Com base nisso, muitos ativistas e pesquisadores argumentam que deveria ser um crime sexual específico.
O Revenge Porn é enquadrado na categoria de crime contra honra e difamação. Se envolver menor de idade, o crime é de pornografia infantil, o que tem penalidade ainda mais severa.
No Brasil, até 2018, não existia um tipo de penalidade que abrangia de forma clara a “pornografia não consensual”. Assim, na medida em que os casos dessa prática aconteciam, havia tentativas de enquadrá-los em crimes já existentes.
A Lei 13.772/2018 criminaliza o ato de fotografar ou filmar cenas de nudez, relação sexual ou de caráter íntimo sem a autorização dos envolvidos. A Lei também vale para qualquer tipo de montagem com fotos, vídeos, áudio ou outros registros que tenham o mesmo objetivo: incluir a pessoa em cenas íntimas. A pena para quem comete esse tipo de crime é de seis meses a um ano de prisão e multa. A violência de gênero tem se apresentado sob novas formas na atualidade, o que demanda atenção dos estudiosos, dos legisladores e dos operadores jurídicos, a fim de que não só sejam adotadas políticas públicas e tratamento jurídico adequado para a proteção das mulheres, mas que também o fenômeno seja abordado de acordo com sua complexidade.
Mesmo com essas leis, as vítimas são compreensivelmente relutantes em falar com a polícia. Isso não ajuda quando os policiais não têm treinamento ou entendimento suficiente sobre essas experiências. Alguns oficiais culparam as mulheres por serem vítimas de abuso sexual baseado em imagem. Atualmente, apenas uma fração dos relatórios policiais de abuso sexual baseado em imagem leva a uma acusação ou intimação ao tribunal.
Quando as vítimas denunciam, um terço delas não processa uma acusação, porque não pode ser garantido o seu anonimato. Se o abuso sexual baseado em imagem fosse uma ofensa sexual, as vítimas teriam que ser mantidas anônimas.
• Apoio à vítima:
Outra coisa que o documentário mostra foi a importância do apoio familiar, tanto para a vítima no plano emocional, quanto na busca por justiça. O destaque da série, para mim, foi Charlotte Laws, mãe de uma das vítimas de Moore. Ela fez campanha contra o site dele e não parou quando a imagem de sua filha foi retirada. Ela apoiou outras vítimas e o FBI em uma luta por justiça contra Hunter Moore.
Vítimas de abuso sexual baseado em imagem claramente precisam de apoio, mas nem todas têm alguém como Charlotte. Destiny Benedict, outra das vítimas de Moore. A série documental retrata Moore manipulando Benedict para enviar-lhe mais conteúdo para que ele removesse fotos de seus filhos de seu site.
A série “O Homem Mais Odiado da Internet” chamou uma atenção importante para essa questão, mas todos podemos fazer mais para apoiar as vítimas de Revenge Porn, começando por reconhecermos que é Violência de Gênero.
Assista aqui ao documentário na NetFlix.
Um abraço para todos.
Ana Brocanelo – Advogada.
OAB/SP:176.438
Fonte: The Conversation. “O que o documentário da Netflix “The Most Hated Man on the Internet” acertou (e errou) sobre ‘pornografia de vingança‘. Publicado sob licença CC BY 4.0.